Para “colher” o inconsciente

Um dos maiores especialistas em comportamento do consumidor, Gerald Zaltman focaliza a “cocriação” dos clientes no marketing

Você já se perguntou o que acontece quando temos um pensamento? Uma das respostas é que um conjunto de neurônios conectados é ativado. Um pensamento, porém, só adquire significado em função de outros aos quais está ligado. Assim como um dicionário não nos conta uma história, um pensamento isolado tem pouco sentido; é necessária uma combinação de conjuntos de neurônios. Às vezes, quando os clusters neuronais são coativados e associados, a combinação entre alguns deles resulta em outro cluster significativo, e assim nasce um novo pensamento.

Chamo a esse processo “cocriação”. Trata-se do surgimento de novos pensamentos a partir de pensamentos independentes que se encontram e produzem outro significado. Uma nova combinação de neurônios –um novo circuito neuronal– emerge desse encontro. Concebe-se um novo espaço ou domínio, integrado por elementos selecionados de cada um dos dois (ou mais) domínios antes independentes. E uma ou mais ideias emergem da combinação desses espaços.

Por exemplo, uma pessoa que está procurando um veículo robusto poderia deparar com um aviso que mostre a suspensão de um caminhão. O conceito de “robusto” (um benefício do produto) interage com a informação que envolve a suspensão (um atributo do produto) para produzir uma nova ideia: a da liberdade para dirigir em todo tipo de terreno, ao mesmo tempo que as noções de “robusto” e “sistema de suspensão” permanecem retidas como parte desse esquema modificado.

Observe-se que não é necessário mencionar no aviso “a liberdade para dirigir em todo tipo de terreno” para que isso venha à mente. Na verdade, é provável que o pensamento seja mais poderoso se a ideia vier à mente do consumidor por meio da cocriação.

O papel da memória reconstrutiva

A codificação, o armazenamento e a recuperação de informação que estão em nossa memória são centrais para a formação de nossas representações conscientes da vida diária. A memória –particularmente a episódica– não é um acontecimento fixo como uma foto, embora guarde similaridades com esta, como o fato de poder velar, desbotar ou estar fora de foco. Na realidade, comprometemos a memória como se nossa mente tivesse a própria versão do Photoshop.

O ato de recordar envolve uma reconstrução de informação que leva à distorção. Tecnicamente, cada vez que relembramos um acontecimento, um conjunto diferente de neurônios intervém, pois cada evento da memória é sensível ao contexto e fornece a repetição de um evento mental ou físico similar, mas não idêntico. As diferenças costumam ser triviais, porém às vezes podem ter consequências enormes, mesmo que a pessoa que recorda não tenha consciência das mudanças ou de sua magnitude.

Uma questão importante é o que acontece durante um processo reconstrutivo da memória, o que o desencadeia e determina seu conteúdo. Uma resposta simples é a cocriação ou combinação dos estímulos imediatos com o conhecimento prévio para recriar uma experiência ou acontecimento anterior.

Uma conclusão fundamental aqui é que os chamados estímulos imediatos, como a informação sobre a suspensão do caminhão, são significativos para o indivíduo e se encaixam em sua estrutura de conhecimentos. A mescla de estímulos prévios armazenados e novos estímulos é a chave da cocriação (veja exemplo no quadro da página ao lado).

A lembrança da publicidade

Realizei uma pesquisa com Kathryn Braun-LaTour para avaliar o impacto da publicidade nas crenças. Pedimos às pessoas recrutadas para o experimento que respondessem por telefone a um simples questionário sobre suas atitudes e crenças a respeito de um tema de saúde específico. Elas então foram convidadas a ir a um laboratório, onde se dividiram em três grupos: um de controle, um que veria um comercial da marca A e outro que veria um comercial da marca B.

Depois de uma atividade inicial de distração, foram informadas de que estavam participando de uma experiência sobre memória. Foi-lhes entregue uma versão impressa do mesmo questionário e pediu-se que se esforçassem para fornecer as mesmas respostas dadas dias antes pelo telefone. Dois ou três dias depois da visita ao laboratório, elas voltaram a ser contatadas por telefone e as mesmas perguntas foram formuladas pela terceira vez, mas sem menção a uma experiência sobre memória.

O argumento do comercial A tentava produzir ou fortalecer entre os consumidores um pensamento até então ausente. Isso foi conseguido, como ficou evidenciado pela modificação de sua lembrança das respostas iniciais. O grupo de controle não demonstrou mudanças estatisticamente significativas. Entretanto, os que assistiram aos comerciais exibiram diferenças importantes, consistentes com o impacto procurado pelo comercial A e pelo comercial da concorrência para a marca B, e essas diferenças persistiram dois ou três dias depois. Para que fique claro: não foi perguntado aos participantes nada sobre os comerciais em si, nem sobre seu conteúdo, nem se tinham gostado deles. Só lhes foi pedido que repetissem o que tinham dito sobre suas atitudes e crenças em relação ao tratamento de uma doença.

O ponto básico é que esses processos de cocriação –o surgimento de novos pensamentos quando os pensamentos existentes se encontram e se combinam com novos estímulos– ajudam a produzir lembranças modificadas, e os pensamentos ou combinações recém-criados passam a fazer parte do que se recorda como experiência prévia. A consequência é que as pessoas às vezes se lembram de ter tido um pensamento que na realidade não tiveram e até lhes atribuem peso significativo, ou se lembram mal do peso que atribuíram aos pensamentos expressos anteriormente.

A cocriação –combinação de pensamentos para produzir um novo– é crucial para gerar valor. Esses pensamentos que se encontram podem envolver experiências passadas ou esquemas de conhecimento antes não relacionados, ou a combinação de uma experiência passada com um novo estímulo. Em ambos os casos, temos consciência do novo pensamento ou conjunto de pensamentos, e esse processo se mostra muitíssimo facilitado pelo uso de metáforas.

Os temas da mente inconsciente analisados aqui não são novos, porém a maneira como estão entretecidos não foi totalmente valorizada. Entender isso melhor pode nos ajudar a aprofundar o conhecimento sobre a conduta do consumidor e melhorar os métodos de pesquisa e prática do marketing. Espero que muito em breve as companhias estejam em condições de “colher” o inconsciente para criar valor para a empresa e para a sociedade.

Batida vs. acidente

A cocriação mencionada neste artigo depende basicamente da mescla de estímulos prévios armazenados na mente do consumidor e novos estímulos. Isso fica evidente no experimento que fizemos, em que algumas pessoas assistiram a um filme que mostrava dois automóveis em movimento em contato forçado um com o outro.

Depois de exibido o filme, pedimos a um grupo que anotassem o que viram no “acidente”; ao outro, solicitamos que escrevessem o que viram na “batida”.

Resultado: muito mais pessoas do grupo da batida mencionaram vidros quebrados. E essa incidência não estava ligada ao fato de o filme mostrar isso realmente.

O fato é que os indivíduos se lembravam de maneiras diferentes quando os esquemas de “acidente” e de “batida” eram ativados, porque os dois termos evocam imagens (e padrões de atividade neuronal) que envolvem forças distintas. As imagens de forças distintas interagiam de maneira diferente com a informação codificada quando se assistia ao filme.

A maior incidência de vidros quebrados lembrados pelo grupo da batida é um novo significado, surgido ao combinar inconscientemente a informação original com as imagens presentes na palavra “batida”.

Elementos de conjuntos de conexões neuronais antes separados se combinaram para formar uma nova rede, que, nesse caso, criou uma cena que envolvia vidros quebrados e a (falsa) sensação de tê-los visto. (G.Z.)

Fonte: HSM Management 86 • Maio-junho 2011
Para assinar: http://www.hsm.com.br/revista/assinaturas

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About the Author:

Mestre em Economia, especialização em gestão financeira e controladoria, além de MBA em Marketing. Experiência focada em gestão de inteligência competitiva, trade marketing e risco de crédito. Focado no desenvolvimento de estudos de cenários para a tomada de decisão em nível estratégico. Vivência internacional e fluência em inglês e espanhol. Autor do livro: Por Que Me Endivido? - Dicas para entender o endividamento e sair dele.

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