Improvisadas, clandestinas e lentas, as “lan houses de garagem” conectam quase metade dos usuários de computador do país
Kalleo Coura
Revista Veja – Edição 2166 – 26/05/2010
Eduardo Martino/Cocumentography |
VENTILAÇÃO NATURAL Crianças da favela de Antares, no Rio, jogam game em lan house improvisada: computadores têm de ser mantidos abertos para evitar o superaquecimento |
Que sirva de consolo para quem não consegue acessar a internet sem maldizer a velocidade da conexão. No Brasil, entrar na rede sentado no sofá de casa e assistir a clipes no YouTube sem esperar uma eternidade é ainda um privilégio. Mais de 32 milhões de brasileiros, quase metade do total de usuários de internet no país, têm experiência de conexão de banda larga – ou, para ser mais exato, de banda pouco mais veloz do que a quase extinta internet discada – quando visitam uma entre os milhares de “lan houses” encravadas nas zonas mais pobres das grandes cidades e nos rincões perdidos do interiorzão bravo. Esses pontos de acesso à internet, dos quais oito em cada dez são clandestinos, têm seu nome derivado de LAN – sigla em inglês para “rede local de computadores” – e house, casa. VEJA visitou 21 desses estabelecimentos em cinco estados: São Paulo, Rio, Maranhão, Pará e Pernambuco. Em geral, eles funcionam nos fundos de casas particulares ou em pequenos pontos comerciais, como salões de cabeleireiro e videolocadoras. Para aumentarem um pouco o faturamento, seus donos compram uns computadores, instalam neles softwares piratas e contratam um serviço de banda larga cuja conexão é compartilhada por todos os usuários. O resultado é precário. Sem ar-condicionado, a saída muitas vezes é arrancar a tampa dos computadores para que as peças trabalhem perto da temperatura ideal.
Algumas lan houses utilizam conexão via rádio, o que torna a experiência de navegação ainda mais sofrida e intermitente, pois elas sofrem com o mau tempo. Mas isso é do jogo, e tem lan house simplificando a vida das pessoas em lugares onde não existe agência dos Correios nem do Bradesco, duas das instituições mais capilarmente espalhadas pelo Brasil. Entrar em uma delas em alguma cidade praticamente isolada da vida urbana brasileira equivale a voltar à civilização. As lan houses oferecem acesso à internet e, com ele, uma gama de facilidades às quais alguns dos brasileiros mais pobres não teriam acesso de outra forma. Precisa digitalizar e fazer uma cópia em papel do currículo para procurar emprego? Pagou uma conta, mas estão cobrando de novo e é preciso conseguir uma segunda via? Precisa saber se está com o nome limpo no SCPC ou no Serasa? Não é necessário pegar o ônibus ou caminhão e ir à cidade média mais próxima, nem incomodar parentes e conhecidos. Basta entrar em uma lan house. Segundo o Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação, 74% dos usuários de internet das classes D e E recorrem às lan houses em busca de entretenimento ou soluções digitais instantâneas e baratas.
A pernambucana Dejaíra Barbosa, de 34 anos, é uma delas. Agricultora, ela ganha cerca de 400 reais por mês e gasta 4 reais por semana para ficar duas horas na lan house da sua cidade, Manari, no sertão de Pernambuco. Além de ver “notícia e horóscopo”, Dejaíra usa a rede para consultar a previsão do tempo. “Fico sabendo o dia de plantar e de fazer as canaletas para estocar a água da chuva na barragem.” Numa cidade em que a água encanada existe há apenas um ano e muitas vezes chega a faltar nas casas por vinte dias seguidos, a informação é uma preciosidade. Manari tem 18.000 habitantes, apenas cinquenta dos quais possuem conexão em casa. A cidade já tem duas lan houses.
Em São Paulo, só na maior favela da cidade, a de Heliópolis, as lan houses de garagem são 42. Tanta concorrência fez Raimunda de Carvalho, dona de um salão de cabeleireiro há três anos equipado com computadores, pensar em agregar um terceiro serviço ao seu já multifuncional negócio. Na entrada do salão, ela pretende acomodar um carrinho de cachorro-quente e vender sucos e salgadinhos. “Enquanto o cabelo não fica pronto, o cliente pode entrar na internet e comer um lanche”, diz. Os usuários parecem não se importar em dividir o espaço dos computadores com secadores de cabelo, sanduíches e até uma máquina de lavar – esta sem nenhuma relação com os serviços oferecidos no local: está lá apenas porque Raimunda não achou lugar para ela em casa. Desde que começou no negócio, em 2007, a cabeleireira dobrou sua renda e hoje fatura 2.500 reais mensais com o salão e os computadores.
Um de seus concorrentes em Helió-polis, o comerciante Antônio Rodrigues Filho, diz que não sabe acessar a internet, mas já tem dezesseis computadores interligados no piso superior do seu mercadinho. Especializada em jogos eletrônicos, a lan house de Antônio é frequentada principalmente por jovens barulhentos. Para manter a ordem no local, o comerciante colocou um aviso na parede: “Campanha boca limpa: a cada palavrão falado, desconto de 10 centavos (no tempo)”. Ao contrário do que se possa pensar, não parte de lan houses a maioria dos e-mails criminosos espalhados pela rede. Segundo levantamento feito pelo Comitê Gestor da Internet, apenas 13% dos casos que envolvem disseminação de vírus e tentativas de fraudes bancárias vêm desses estabelecimentos. O número de ocorrências do gênero com origem em computadores domiciliares é cinco vezes maior.
As lan houses costumam ser bem-vistas pelas mães. Muitas atribuem a elas um caráter educativo. A empregada doméstica carioca Gleide Gomes, por exemplo, moradora da favela de Antares, Zona Oeste do Rio, conta que não se importa em gastar quase a metade dos 300 reais que recebe por mês para que os seus três filhos frequentem a lan house da vizinhança. Para ela, trata-se de um “investimento”. Como a família mora em uma área dominada por uma facção criminosa, ela diz que o passatempo evita que os filhos fiquem pela rua, à mercê dos traficantes. “Depois, indo lá, eles aprendem melhor computação”, acredita.
Gleide não está de todo errada. “Embora num primeiro momento as pessoas busquem a internet para entreter-se, com o passar do tempo aumentam as chances de elas usarem a rede para fazer algo útil do ponto de vista profissional e econômico”, afirma o inglês Mark Williams, economista do departamento de tecnologias da informação e comunicação globais do Banco Mundial. O economista foi um dos coordenadores de um estudo que prova que, mesmo clandestinas em sua maioria, as lan houses oferecem uma importante contribuição para a economia de uma nação. O estudo, que analisou 120 países, de 1980 a 2006, verificou que, a cada vez que a penetração da banda larga num país emergente cresce 10%, o PIB local sobe 1,4%. “Isso decorre do aumento na produtividade e da redução de custos que ela acarreta”, disse Williams a VEJA.
As lan houses são o primeiro instrumento para a disseminação da banda larga, mas seu papel tende a diminuir conforme essa tecnologia avança. Nos anos 90, quando menos gente na Europa possuía a conexão em casa, os cibercafés eram muito mais numerosos no continente. No Brasil, embora o alcance da banda larga ainda seja baixo – atende 21% do total das residências –, o mesmo fenômeno começa a ser observado. Até o ano passado, a maior parte da população se conectava à rede por meio de lan houses. Neste ano, pela primeira vez, a maioria dos acessos passou a ser feita a partir das casas. Um dia as lan houses serão coisa do passado, tão obsoletas quanto as antigas cabines telefônicas do século XX. Mas elas vão ficar na memória de dezenas de milhões de brasileiros como o lugar onde deram os primeiros passos no admirável mundo novo da tecnologia digital da informação.
DEZ HORAS POR DIA NA LAN HOUSEEmbora tenha computador e internet em casa, o estudante Ricardo Henrique de Oliveira, de 16 anos, é um dos mais assíduos frequentadores das lan houses da favela de Heliópolis, em São Paulo. “Às vezes passo dez horas seguidas aqui. Não tem graça jogar sozinho”, diz. Ele é craque em games on-line, e sua destreza com o mouse lhe rendeu notoriedade na internet. “Já fui o primeiro no ranking brasileiro de Defense of the Ancients (nome de um game popular).” O sonho de Ricardo é ser jogador profissional de game. “Ou, pelo menos, analista de sistemas.”
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HORÓSCOPO E METEOROLOGIAAté há pouco tempo, a agricultora Dejaíra Barbosa, de 34 anos, nunca tinha usado um computador. Foi aprender na lan house de sua cidade, Manari, no sertão pernambucano. O dono do lugar, José Manoel Filho (na foto, com Dejaíra), foi quem teve a paciência de ensiná-la. Agora, Dejaíra acessa a previsão do tempo pelo menos uma vez por semana, para saber quando plantar e fazer canaletas para levar a água da chuva até a barragem. “Mas também gosto de ver notícia e horóscopo”, diz.
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BAIÃO 2.0O músico paraense Wellerson Costa, de 19 anos, toca numa banda de xote e baião de Belém (PA). Como nunca estudou em conservatório, aproveita uma das lan houses da cidade para ver vídeos de músicos famosos, copiar partituras e ler textos sobre o assunto. Quando o site está em inglês, Costa recorre ao tradutor do Google. Ele também usa o MSN para conversar com músicos de outras cidades. |
CORTE, TINTURA E INTERNETHá três anos, a cabeleireira Raimunda Bandeira de Carvalho decidiu abrir uma lan house no andar de baixo do seu salão. No começo, seus filhos e marido não gostaram da ideia, mas hoje a acham ótima. O faturamento do salão dobrou com a instalação dos computadores. Raimunda diz que as clientes gostam de usar a rede enquanto esperam a tintura fazer efeito. Neste ano, ela quer crescer ainda mais: em breve, no mesmo espaço vai vender suco e cachorro-quente.
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NA ESCOLA, NADA DE COMPUTADORAs estudantes cariocas Ana Carolina Cândido e Marcela da Silva, de 14 anos, estudam juntas e compartilham os mesmos hábitos: pelo menos quatro vezes por semana, vão a uma lan house do bairro de Nova Sepetiba, na Zona Oeste do Rio, onde moram. Lá, fazem pesquisas escolares e, claro, usam o Orkut e falam com os amigos pelo MSN. A escola estadual em que estudam possui computadores, mas não os disponibiliza para os alunos, segundo as estudantes, porque não tem professor de informática.
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IDH BAIXO, INTERNET EM ALTAManari é uma cidade de 18 000 habitantes que fica no interior de Pernambuco, a 350 quilômetros da capital, Recife. Em 2000, a cidade ficou em último lugar no ranking do índice de desenvolvimento humano (IDH), calculado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Mas Manari evoluiu. As ruas principais não são mais de terra, e há água encanada. E, claro, duas lan houses, sempre lotadas.
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TRIBO CONECTADAEm Jacareacanga, no Pará, mais da metade da população é indígena, como a estudante Rosalete Munduruku, de 23 anos. Como vários de seus amigos, ela é frequentadora habitual da lan house da cidade. Rosalete usa a internet para encomendar seus livros de faculdade. “Eles demoram duas semanas para chegar, mas é o único jeito, já que aqui não tem livraria nem uma boa biblioteca”, diz.
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JAZZ E YOUTUBEO músico carioca Ronaldo Martins, de 33 anos, diz ter aprendido muito desde que passou a usar a internet. Morador da favela de Antares, na Zona Oeste do Rio, ele começou a frequentar lan houses em 2002. “De que outra forma eu teria acesso a referências como John Coltrane, B.B. King, Miles Davis e Charlie Parker?”, indaga. Hoje, Martins tem internet em casa, mas, quando quer ver vídeos ou fazer uploads de gravações suas para o YouTube, ainda vai às lan houses centrais do bairro. “Lá a conexão é bem melhor.”
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O EMPRESÁRIO ANALÓGICODono de um mercadinho na favela de Heliópolis, o comerciante Antônio Rodrigues Filho jura que não sabe ligar um computador. Mesmo assim, ele montou na parte de cima do mercado uma lan house que começou com seis máquinas e agora tem dezesseis. Diz que o sócio é quem “mexe com elas”. “Sou analfabeto, não tenho curiosidade nem paciência para fazer isso, não.”
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