Mark Zuckerberg e o Facebook estão mudando o que entendemos por espaço pessoal. Será o fim da vida privada?
Fonte: André Faust – Revista Exame – Edição 970 – 09/06/2010
Entre os grandes feitos do inglês G.M. Trevelyan, um dos maiores historiadores britânicos de todos os tempos, está a descoberta de uma alteração na arquitetura de mansões e palácios ingleses do século 17. Estudos das construções da época trouxeram indícios de que as salas de estar – tradicionalmente os maiores cômodos das casas e principal lugar de convívio dos moradores – começaram, em certo momento, a diminuir de tamanho. Enquanto isso, os quartos, espaços privativos, ganhavam dimensões cada vez maiores. Para os ingleses daquele tempo, o cômodo separado era a garantia de poder compartilhar momentos privados apenas com quem quisesse. Ao lado de outras transformações que tiveram origem na Revolução Industrial, no século 18, a anedota dos quartos e das salas ilustra como se deu, nos tempos modernos, o desenvolvimento do conceito de privacidade. Séculos mais tarde, a web transferiu para o espaço virtual práticas e costumes existentes nas relações de privacidade entre familiares, amigos e conhecidos. De início, as primeiras ferramentas tinham relação direta com formas de comunicação mais antigas. Um e-mail era pouco diferente de uma carta enviada pelo correio. A separação entre quartos e salas parecia muito clara também no ambiente virtual. E aí vieram as redes sociais.
Com formas de interação sem nenhuma correspondência com o mundo físico, as divisões entre os cômodos começaram a se confundir. As pessoas passaram a transitar livremente pelos aposentos das casas. Pior: começaram a entrar na casa de amigos e parentes sem nem ao menos bater na porta – porque as portas simplesmente deixaram de existir. A web como fenômeno de massa tem pouco mais de dez anos, e sua curta história é cheia de transformações repentinas. Mas, mesmo no ambiente fluido e maleável do ciberespaço, a transformação que as redes sociais estão provocando em nossa vida é notável. Os colegas de trabalho de uma hora para outra viraram amigos do Facebook; os chefes são seus seguidores no Twitter; os clientes, compadres no LinkedIn. Num mundo em que tudo pode ser compartilhado, do cardápio do café da manhã às fotos da festa do sobrinho, o espaço para a vida pessoal parece cada vez menor. Mesmo que você não queira saber, as atividades dos amigos de Facebook brotam nas páginas, no email, no celular. João viu a foto do José. Paulo ficou amigo da Adriana. Luís gostou de um vídeo do YouTube. “As pessoas hoje divulgam informações sobre si próprias de uma maneira que seria impensável poucos anos atrás”, afirma James Rule, professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley.
No centro dessa nova privacidade – ou falta dela – está o Facebook. Se fosse um país, a rede social e seus 400 milhões de habitantes seria o terceiro mais populoso do mundo, atrás apenas de China e Índia. As fotos armazenadas pelos usuários fazem do Facebook o maior banco de imagens do planeta. Juntos, seus usuários gastam mais de 500 bilhões de minutos no site por mês. Mais de um terço dos americanos possui um perfil ativo no site e, rapidamente, o Facebook vem ganhando terreno fora dos Estados Unidos. Hoje, 70% do tráfego total vem de outros países. Mesmo no Brasil, onde o Orkut tem a liderança absoluta entre as redes sociais, o Facebook cresce a passos largos para se tornar em algum momento a maior rede social do país: já são cerca de 10 milhões de usuários, ante 26 milhões do Orkut. Por qualquer medida que se adote, o projeto lançado seis anos atrás pelo jovem americano Mark Zuckerberg, hoje com 26 anos de idade, já é um dos maiores fenômenos da história da internet.
Mas também é um dos mais controversos. Para crescer e sobreviver como negócio, o Facebook depende da disposição dos usuários de compartilhar detalhes de sua vida por intermédio do site. Quanto mais viva e animada for essa conversa, mais presas ficam as pessoas ao serviço – e melhores são as chances de o Facebook faturar com publicidade. “Acreditamos que uma das coisas mais transformadoras dessa geração é a disponibilidade de informações”, afirmou Mark Zuckerberg em diversas ocasiões. Parte disso, ele espera, virá de um volume maior de informações pessoais circulando na rede – informações sobre gente como você. Até aí, não há nenhum problema de privacidade. Ninguém é obrigado a publicar fotos embaraçosas em seu perfil ou a fazer comentários comprometedores sobre os outros. A questão é que o Facebook, de acordo com os críticos, traiu a confiança de seus usuários. Inicialmente, quase tudo o que se colocava no site era dividido apenas com os amigos, a menos que o usuário decidisse o contrário. Com o passar do tempo, sucessivas mudanças nas políticas de privacidade inverteram as regras: quase tudo o que se publicasse no site era público, a menos que o usuário decidisse proteger as informações. Não parou por aí. O texto que define a política de privacidade do Facebook tem mais de três vezes o tamanho desta reportagem, e os cerca de 50 controles de privacidade eram tão complicados que nem mesmo os usuários mais dedicados conseguiam entendê-los.
De menino prodígio, Zuckerberg passou a ser o vilão da vez do mundo da tecnologia. As reclamações chegaram ao ponto máximo em maio. No início deste mês, ele anunciou uma simplificação das regulagens do que é público e do que é privado. Mas a má impressão vai levar muito mais tempo para se desfazer. Quatro estudantes da Universidade de Nova York, todos usuários do Facebook na casa dos 20 anos, anunciaram um revide: o desenvolvimento da primeira grande rede social descentralizada. Para financiar o projeto, eles esperavam levantar 10 000 dólares em doações em um prazo de 39 dias. Arrecadaram mais de 20 vezes o montante pretendido. Com o lema de que “o contrato entre redes sociais e usuários está desequilibrado”, os desenvolvedores do Diaspora, como o projeto foi batizado, trabalham a todo vapor para lançar ainda em 2010 uma alternativa ao Facebook que, no mesmo espírito do software livre, deverá ter código aberto, de maneira que ninguém tenha controle absoluto sobre o que pode ou não ser feito ali. É pouco provável que o Diaspora venha a ter a mesma popularidade do serviço criado por Zuckerberg. Mas um dos objetivos do projeto, que é abrir os olhos para a confiança extrema que os usuários depositam no site, parece ter sido alcançado.
O Facebook não foi o primeiro nem será o último gigante da internet a se envolver em polêmicas sobre privacidade de dados online. O Google está sob investigação em países como Austrália e Alemanha por causa do Street View, um apêndice do consagrado Google Maps. O serviço mostra fotos de todas as ruas de uma cidade. As imagens são coletadas por carros especiais, que têm um sofisticado equipamento acoplado ao teto. Só que os carros também coletavam informações de redes Wi-Fi abertas, inclusive mensagens de e-mail, sem que nem mesmo os responsáveis pelo serviço soubessem disso: o programa era um experimento de alguns engenheiros. Diante das denúncias, o Google se desdobrou em pedidos de desculpas. Disse que as informações coletadas nunca foram utilizadas e que a coleta havia sido um erro. Mas foi um abalo e tanto na reputação da empresa que tanto gosta de propagandear o lema “Não seja do mal”.
Reclamar das grandes empresas ou da tecnologia ajuda a descarregar a frustração, mas a realidade é que boa parte do problema é puramente humana. Alex Glikas não pode colocar a culpa no Twitter pelo deslize que custou seu emprego e seu sossego. Glikas, corintiano, fez um comentário chulo sobre os sãopaulinos. O problema é que a Locaweb, empresa da qual era diretor comercial, patrocinava o São Paulo. A mensagem se espalhou rapidamente. Estima-se que o tweet tenha atingido 1,7 milhão de pessoas. Glikas teve de deixar a empresa e ainda recebeu ameaças de torcedores são-paulinos que encontraram seu telefone e o divulgaram em fóruns na web. Até hoje ele está em silêncio e prefere não voltar ao assunto. “Você pode ser um funcionário cuja conduta em horário comercial é exemplar, mas, se sua visão política, social ou religiosa não é compartilhada universalmente por todos de seu círculo profissional, dividir essa visão pode fazer com que os outros pensem diferente sobre você”, afirma Mike Spinney, analista sênior do Instituto Ponemon, centro de pesquisas sobre privacidade com sede nos Estados Unidos. Para evitar episódios como esse, cada vez mais empresas correm para atualizar seus códigos de ética. A alemã Basf distribuiu a todos os funcionários um manual de bons modos na internet. “Precisávamos assegurar que as pessoas tivessem consciência do que elas fazem na internet”, diz Gislaine Rossette, diretora de comunicação da empresa.
Comportadas ou não, o fato é que as pessoas não demonstram menos sede de divulgação de informações. A última novidade é um serviço chamado Foursquare. Trata-se de uma espécie de Twitter da localização. Pelo celular, os usuários informam aos amigos onde estão: num bar, num restaurante, na academia e assim por diante. Em teoria, somente os amigos têm acesso à informação. Mas muitos optam por publicar a localização no Facebook, por exemplo. Ou seja: podem estar informando abertamente ao mundo o lugar onde estão a cada momento. Meses após o lançamento do Foursquare, alguns voluntários lançaram o PleaseRobMe. com (“Por favor, me roube”). Usando dados públicos do Foursquare, o site chamava a atenção para os momentos em que os usuários estavam fora de casa – uma prestação de serviço aos ladrões, por assim dizer.
O Foursquare, porém, ainda é um serviço jovem, usado por menos de 2 milhões de pessoas. No que diz respeito a polêmicas sobre privacidade, pelo menos, tudo indica que a discussão tem a ver com o crescimento de determinadas redes e sites. “O tamanho definitivamente importa”, afirma James Rule, de Berkeley. Segundo essa lógica, a preocupação em relação ao tratamento de informações pessoais cresce toda vez em que há grande concentração de dados nas mãos de algumas poucas companhias. E, se a história serve de guia, podemos esperar outras polêmicas envolvendo privacidade e grandes empresas de internet no futuro. Foi assim em 2002 com o Hotmail, o maior provedor de e-mails do mundo, com mais de 300 milhões de usuários cadastrados, quando promoveu uma revisão de sua política de privacidade. Em 2007, foi a vez de o Google receber da organização Privacy International o selo de companhia “hostil à privacidade” – a principal reclamação dizia respeito ao armazenamento de milhões de pesquisas de usuários.
A polêmica recente joga luz sobre o papel do Facebook no jogo de forças da internet. A ambição do Facebook é simples: ser a carteira de identidade da web, o repositório central de todas as experiências e andanças reais e virtuais de centenas de milhões de pessoas mundo afora. Hoje, mais de 250 000 sites estão de alguma maneira ligados ao Facebook. Alguns aboliram seus sistemas de cadastramento. Em vez de criar um mecanismo de autenticação, simplesmente permitem que as pessoas entrem com sua identificação do Facebook. Outros aderiram ao Open Graph. O sistema permite que um usuário dê nota positiva a uma reportagem lida no Portal EXAME, por exemplo – e que essa ação seja registrada e divulgada para todos os seus ami gos. O Open Graph teve sucesso instantâneo, foi instalado em mais de 50 000 sites e recebe mais de 1 bilhão de votos por dia. E é assim que Zuckerberg e o Facebook estão derrubando as paredes entre a sala e os quartos: um voto, um comentário e uma fotografia de cada vez.
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