Dentre os 102 países para os quais há dados, em apenas 10 é possível almoçar pagando menos do que por aqui — sinal da perda de valor do real.
Estamos em promoção no mundo. No começo do mês, o cardápio composto por uma refeição simples, meio litro de cerveja e um cappuccino custava menos aqui do que na Bolívia. Dentre os 102 países para os quais há dados, em apenas 10 era possível almoçar pagando menos do que no Brasil. Viramos uma pechincha porque nossa moeda perdeu valor frente à maioria. É verdade que o real subiu um pouco ao longo de setembro, mas a pergunta segue válida: faz sentido?
À primeira vista é claro que sim, pois o real é negociado livremente. Ademais, as tentativas de identificar exageros do mercado não costumam produzir bons resultados. O câmbio flutua ao sabor de expectativas para variáveis erráticas, como crescimento, inflação, taxas de juros etc. O pano de fundo é a “narrativa” da moda que, por sua vez, pode mudar da noite para o dia bastando uma surpresa de além-mar, um ato infeliz do executivo ou uma escorregada do congresso.
Sendo assim, comparar o custo de vida entre os países não ajuda muito a esclarecer os movimentos cambiais, mas o exercício é sempre útil para distinguir situações exóticas. Sabemos que os países mais ricos tendem a ser mais caros. Na Suíça, por exemplo, um “pf” acompanhado de cerveja e cafezinho sai por quase R$ 220,00! Na verdade, 80% das variações internacionais do custo do menu podem ser atribuídas a discrepâncias de salários.
Dito isso, a refeição brasileira está barata mesmo quando a renda é levada em conta. No início de setembro, o dólar deveria baixar de R$ 5,40 para R$ 4,80 para harmonizar nosso poder de compra com o dos turistas estrangeiros, considerando a relação típica entre as variáveis. A conclusão é igual se usarmos as taxas de inflação do Brasil e dos EUA para trazer as cotações passadas do dólar a preços atuais – a verdinha oscilou em torno dos mesmos R$ 4,80 nos últimos 35 anos.
Como então explicar a fraqueza flagrante do real? Se porventura houvesse falta de interesse pelos produtos que o Brasil exporta, nosso dinheiro deveria valer pouco mesmo. Afinal, a razão primordial para desejar outras moedas é usá-las para comprar bens e serviços. Assim, quando o mundo demanda mais minério de ferro e soja o real se fortalece e vice-versa. O problema com essa história é que os preços de nossas vendas externas têm flutuado em patamar semelhante ao observado nos últimos anos e bem acima da média histórica.
No caso específico da moeda americana é preciso levar em conta que hoje ela está cara de forma generalizada. Degustar nossa merenda de referência na terra do Mickey pesa no bolso de pessoas de 88 nacionalidades, incluindo gente acostumada a rasgar dinheiro quando viaja, como suecos e japoneses. O dólar está inegavelmente caro, mas esse fato também não explica o tamanho da pindaíba internacional dos brasileiros. Se o padrão histórico que liga os ciclos da moeda americana a sua cotação aqui servisse de guia, deveríamos pagar R$ 4,60 para ir à Disney (considerando também os preços de nossas exportações e importações). Se o dólar não estivesse nem caro nem barato no mundo, deveria custar algo próximo de R$ 4,00.
Outra razão que poderia fazer o público rejeitar o real seria o risco de algum problema em nossas contas externas. Mas não é por aí. As reservas internacionais dão para pagar os compromissos do país e ainda sobram uns trocados. O déficit anual nas transações com o resto do mundo tem caído e hoje gira em patamar confortável. Além do mais, a própria desvalorização recente do real reduziu o valor dos haveres dos estrangeiros no Brasil – movimentos semelhantes no passado antecederam o fortalecimento de nossa moeda.
Não dá igualmente para explicar o quebra-cabeça apelando para o fato de que hoje o Brasil pratica juros civilizados. É verdade que o custo de apostar contra o real caiu bastante, elevando-se a amplitude dos vaivéns de preços no curto prazo. Além disso, o registro de taxas de juros menores estimula os poupadores brasileiros a diversificarem internacionalmente suas carteiras. Por outro lado, juros menores induzem investimentos e as moedas de países com boas perspectivas de crescimento tendem a se fortalecer. O efeito do juro é ambíguo.
Remexendo um pouco mais essa questão, no entanto, talvez a razão para a aversão relativa ao real apareça. Pergunta-se: o governo está preocupado em preservar a estabilidade conquistada com suor desde o Plano Real? Os juros caíram respondendo à política econômica ortodoxa reintroduzida por Temer e, na propaganda, seguida por Bolsonaro. As aprovações da “Lei do Teto” e da reforma previdenciária revelaram disposição de enfrentar a ameaça fiscal.
No entanto, a crença de que o capitão realmente compreende a existência de restrições orçamentárias e estaria empenhado em promover as reformas tem sido testada por declarações e escolhas infelizes que sugerem semelhanças sinistras entre o atual governo e seu avesso. Não cabe aqui ensinar a um velho político como explicar a “ciência triste” à população, sobretudo durante uma tragédia sanitária, mas arroubos do tipo “não posso tirar do pobre para dar ao paupérrimo” prenunciam tragédias quando indicam crença na quadratura do círculo.
Não me lembro de ver o país tão perto do gol, com potencial econômico enorme produzido pela combinação de juros baixos com estabilidade de preços. Bastaria o governo agir com o mínimo de seriedade, fazendo o jogo para a torcida, mas sem desafiar a aritmética elementar. Infelizmente, a temporada de populismo e o festival de bondades com o dinheiro da viúva recomenda manter a pulga atrás da orelha. É impossível antever a gota d’água que poderá fazer a “narrativa” do mercado piorar. O câmbio costuma ser um dos canários da mina.
Por: Exame
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