No filme Gremlins, de 1984, um pai de família compra para seu filho um exótico, mas aparentemente inofensivo, animal com jeito de pelúcia, um Gizmo. As únicas recomendações, segundo o vendedor, eram, sob hipótese nenhuma, alimentá-lo após a meia-noite e molhá-lo. A quebra das regras trouxe consequências catastróficas. A água fez a criatura se multiplicar sem controle. E a comida fora de horário transformou o inocente bichinho em um pequeno monstro, o Gremlin. As características do caótico personagem de ficção guardam semelhanças com um grande risco que as famílias enfrentam neste ano: as dívidas.
Segundo especialistas, ainda que comecem pequenos e, aparentemente, pouco perigosos, empréstimos usados para cobrir rombos ou para consumo podem vir a sofrer o “efeito Gremlin” diante de um cenário de juros altos e ainda subindo, associado à sombra do crescimento do desemprego e da inflação em patamar elevado. Ou seja, o pior ainda não passou.
Os juros em elevação funcionam para as dívidas como a água para os Gremlins, ou seja, encarecem créditos pós-fixados, como as linhas de cartão de crédito e cheque especial, podendo levar o consumidor a cair na armadilha de contrair mais financiamento para cobrir o rombo. “É comum a pessoa estar no rotativo do cartão, com o cheque especial tomado, e contratar novo empréstimo para tentar cobrir os buracos financeiros. Essa pessoa começa a abrir várias frentes de dívida e aí chega no limite de não conseguir mais crédito e o salário estar completamente deteriorado pelos compromissos financeiros”, afirma o coordenador do Programa de Atendimento ao Superendividado do Procon-SP, Diógenes Donizete.
Conforme a Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), do momento em que a Selic chegou em seu patamar mais baixo, de 7,25% ao ano, em outubro de 2012, até abril deste ano, os juros do cartão de crédito e do cheque especial explodiram. No caso da primeira linha, as taxas anuais subiram 102 pontos percentuais e meio, o que representa um crescimento de 53% no custo do empréstimo.
A situação é semelhante no caso do cheque especial, que teve um salto de 60 pontos percentuais na taxa anual. Isso significa um encarecimento de 41,5% em relação há três anos, segundo cálculos da Anefac.
Apesar do já forte aumento de custos de dívidas caras, esse movimento ainda não chegou ao fim. Isso porque o ciclo de aperto monetário do Banco Central ainda não acabou. Conforme o boletim Focus, do BC, que reúne as projeções das principais instituições financeiras, a taxa básica Selic, atualmente em 13,25% ao ano, deve terminar 2015 no patamar de 13,75%. Mas no grupo dos Top 5, das cinco casas que mais acertam os prognósticos, as estimativas máximas já alcançam 14,25%. “Vai piorar para o resto do ano. A perspectiva é de que a Selic aumente e a inadimplência cresça. Então o quadro não é de melhora, mas, ao contrário, de piora”, afirma o professor de finanças da Fundação Instituto de Administração (FIA), Keyler Carvalho Rocha.
O impacto desse encarecimento tem se tornado cada vez mais difícil de ser absorvido pelas famílias nos últimos anos, como mostra o indicador do BC relativo ao rendimento médio efetivo das pessoas ocupadas. Segundo a instituição, enquanto os custos com cartão e cheque especial subiram 53% e 41%, a renda ficou estagnada em relação há três anos. Em março deste ano, o valor médio se situou em R$ 1.967,42 ante os R$ 1.965,92, em outubro de 2012.
“Nós nunca tivemos um conjunto de fatores tão negativos ao mesmo tempo”, afirma o diretor-executivo da Anefac, Miguel de Oliveira. “As famílias têm sido afetadas por inflação elevada há algum tempo, alta de juros e queda na atividade econômica, com uma recessão esperada para o ano. Esse conjunto acaba trazendo outro grave problema adicional que é o crescimento do desemprego”, considera.
Dados do Programa de Administração de Varejo, da FIA (Provar/FIA), e do Instituto Brasileiro de Executivos de Varejo & Mercado de Consumo (Ibevar) apontam para uma rápida contração na folga dos orçamentos familiares. Segundo pesquisa das instituições, a margem mensal para despesas extras caiu de 10,8%, no último trimestre de 2014, para 9,2% no primeiro trimestre deste ano e deve despencar para 6,1% no segundo período de 2015. “No cenário atual, aumentaram as chances de as pessoas ficarem inadimplentes. Além disso, a elevação do risco de crédito gera um ciclo vicioso porque os bancos aumentam as taxas para compensar esse risco maior de inadimplência”, explica o presidente do conselho do Provar/FIA e do Ibevar, Claudio Felisoni.
A maior dificuldade em absorver custos crescentes devido à inflação alta e ao encarecimento do crédito, aliados a uma deterioração no mercado de trabalho, podem funcionar como “alimento após a meia-noite” para as dívidas, que, como os Gremlins, transformam sua natureza e assumem um caráter destrutivo. O cenário tóxico para os orçamentos familiares tem levado ao crescimento da inadimplência.
Segundo o Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), o Brasil tem 55,3 milhões de pessoas inscritas em cadastros de proteção ao crédito. O número representa 37,9% da população entre 18 e 95 anos. “A partir de março deste ano houve um repique da inadimplência, pois a piora dos indicadores foi muita rápida e principalmente a piora da confiança”, afirma a economista-chefe do SPC Brasil, Marcela Kawauti. “O consumidor brasileiro vive equilibrando pratos e com o cobertor curto cresce a inadimplência”, afirma.
Conforme o economista da Serasa Experian, Luiz Rabi, o ritmo de crescimento de negativações está acima do padrão histórico e “deve continuar assim, pelo menos, nos próximos seis meses”. De acordo com Rabi, nos primeiros quatro meses do ano o volume de inclusão de devedores nos cadastros de proteção ao crédito aumentou 15% em relação ao mesmo período do ano passado. Esse número está seis pontos percentuais acima da média histórica (9%).
“A inadimplência sofre influência de ações externas, como taxa de juros e de emprego. Se esses valores saírem de controle, podemos ter uma surpresa ainda mais negativa em relação à inadimplência”, avalia o presidente da Boa Vista, administradora do Serviço Central de Proteção ao Crédito (SCPC), Dorival Dourado.
A melhora nos índices de atraso nos pagamentos deve vir apenas em 2016, na análise de Marcela, do SPC. “A gente ainda está vendo a inadimplência que vem de uma época em que se tomou muito credito e, quanto mais a crise passar, mais a restrição de crédito vai ajudar a segurar os atrasos.”
Trocar crédito caro ajuda na luta contra a inadimplência
Para evitar o “efeito Gremlin” sobre as dívidas, ou seja, a transformação do crédito em um fator destrutivo ao orçamento e a consequente inadimplência, não existe fórmula mágica. Especialistas recomendam cortar gastos, ajustar o orçamento, comprar à vista e trocar dívidas caras por linhas mais baratas. “Eu sugiro que as pessoas simplesmente não façam dívidas e se as tiverem procurem liquidá-las”, afirma o professor de finanças da Fundação Instituto de Administração (FIA), Keyler Carvalho Rocha. Na análise da economista-chefe do Serviço de Proteção ao Crédito Brasil (SPC), Marcela Kawauti, “este ano é um ano de se cuidar. É hora de evitar dívida de longo prazo e privilegiar pagamento à vista”.
“Se quiser parcelar em dez vezes, resista. Não é mais fácil esperar seis meses para comprar o produto à vista?”, questiona o coordenador do Programa de Atendimento ao Superendividado do Procon-SP, Diógenes Donizete. Na visão do especialista, o consumidor precisa ponderar cada gasto que pretende fazer. A regra de ouro, de acordo com o especialista, é que a soma dos financiamentos não supere 30% da renda do consumidor. “Se ultrapassar esse limite está entrando num caminho perigoso.”
Conforme o diretor-executivo da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), Miguel de Oliveira, a primeira providência é colocar no papel a renda da família e as despesas. “Os consumidores precisam visualizar os gastos e realmente enxugar custos, ou seja, enquadrar sua realidade de renda à realidade de despesas”, explica. Para o especialista, alguns hábitos, como ir a restaurantes, podem ser reescalonados ou até mesmo interrompidos temporariamente.
O segundo passo, segundo Oliveira, consiste em trocar dívidas caras, especialmente as pós-fixadas, como o rotativo do cartão de crédito e o cheque especial, por linhas mais baratas. “As melhores alternativas, em termos de taxas, são os consignados e depois os empréstimos pessoais”, aponta. O especialista cita ainda modalidades em que o consumidor oferece um bem como garantia, como linha de crédito com garantia de imóvel ou refinanciamento de veículos, e as taxas são melhores. “É bom a pessoa se antecipar, porque quando ocorre a inadimplência, não vai ter o crédito novo aprovado”, alerta Marcelo Monteiro, diretor da PH3A, especializada em sistemas de recuperação de crédito.
Caso o consumidor já não consiga mais pagar em dia os empréstimos, seja por redução na renda ou um evento como perda de emprego, não existe alternativa senão renegociar as dívidas, considera o diretor da Anefac. “Nessa situação, é necessário ter uma atitude proativa e chamar os credores, como bancos, operadora do cartão e lojas, para reestruturar a dívida”, diz Oliveira. A ideia é que o devedor saia com um acordo no qual consiga um prazo mais longo e uma taxa de juros mais baixa.
De acordo com Monteiro, da PH3A, nos períodos de crise, quando a inadimplência fica pressionada, as instituições tendem a ser mais receptivas às renegociações. “À medida que o cenário fica mais sombrio, a tendência é que as condições de negociação se tornem mais flexíveis e o cliente consiga fazer uma negociação mais proveitosa do que no passado”, diz.
O especialista lembra ainda que o consumidor pode ficar atento às promoções e eventos de renegociação de dívidas, em geral mais frequentes no segundo semestre. “As campanhas com adesão de grandes bancos e financeiras representam uma oportunidade de resolver as pendências, com propostas mais maleáveis e mais generosas de pagamentos.”
Em situações de superendividamento, quando, na definição do Procon-SP, as dívidas comprometem tanto a renda que não sobra o suficiente para as despesas básicas, “a primeira dica é não se angustiar”, pondera Donizete. O especialista recomenda ao superendividado procurar ajuda de um profissional ou um núcleo de tratamento, como o do Procon-SP. “Nós fazemos um diagnóstico dos casos. A pessoa passa por uma entrevista e preenche uma planilha com todos os gastos para verificar o que pode ser cortado”, explica. Esse processo ajuda o consumidor a obter uma reserva financeira para poder negociar. “Em cima desse valor X que sobra vamos procurar o credor para renegociar as dívidas. O endividado deve entender que é mais vítima do que culpado.”
Por: Valor Econômico
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